Gustavo Galon: Segurança jurídica para o contribuinte do ICMS

    Autor: Gustavo Henrique Galon Fernandes
    Data: 19/01/2024
 

A Lei Complementar n° 204/2023, sancionada em 29 de dezembro de 2023, modificou a Lei nº 87/1996 (Lei Kandir), estabelecendo que não incide o ICMS sobre as transferências de mercadorias entre os estabelecimentos do mesmo contribuinte, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte (artigo 12, §4°, da Lei Kandir).


Observa-se que a alteração trazida pela LC n° 204/2023 acaba com uma discussão antiga no âmbito do direito tributário. Isso porque, pela simples leitura da Lei Kandir, percebe-se que a redação do artigo 12, inciso I, determina que incide o ICMS na saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular. Como exemplo, é exigido o recolhimento do ICMS do produtor rural, quando ocorre a transferência de gado bovino da fazenda localizada no estado do Mato Grosso para outra fazenda situada no estado do Paraná, mesmo que as duas sejam de sua titularidade.


Apesar da redação do artigo 12, inciso I, várias decisões proferidas, tanto em tribunais superiores, quanto em tribunais de Justiça, contrariavam o disposto no referido dispositivo legal, eis que entendiam que a transferência de mercadorias entre matriz e filial não constituía o fato gerador do ICMS.


O tema, inclusive, foi objeto de análise pelo próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 1.099 de Repercussão Geral (ARE 1.255.885/MS), que reconheceu a não incidência do ICMS nas operações de mera transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte.

Ademais, em diversas oportunidades, o Superior Tribunal de Justiça também decidiu no sentido de que a circulação física de uma mercadoria entre a matriz e filial não gera incidência do ICMS, pois não ocorre a transferência da posse ou propriedade da mercadoria de uma pessoa para outra.

Na prática, contudo, a administração pública, incluindo a Administração Fazendária dos Estados, não estava vinculada ao entendimento do STF e do STJ. Assim, aqueles contribuintes que não tinham decisão judicial favorável, afastando a incidência do ICMS na transferência de mercadorias entre seus estabelecimentos, eram obrigados, quando realizavam operações de transferência, a efetuar o recolhimento do ICMS, sob pena de autuação pelos fiscos estaduais.

Havia, portanto, grande insegurança jurídica, pois somente aqueles que buscavam o judiciário estavam livres do recolhimento do ICMS nas situações de transferência de mercadorias entre os estabelecimentos de mesma titularidade.

De certo modo, os princípios da isonomia e da livre concorrência eram violados. O texto constitucional, em regra, não permite o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, não havendo espaço, pelo desenho constitucional, para a criação de um cenário em que há vantagem desproporcional a concorrentes em situação equivalente.

Era, pois, justamente o que ocorria. Os contribuintes que não tinham decisão judicial favorável estavam obrigados ao recolhimento do ICMS na transferência de mercadorias entre seus estabelecimentos, o que era causa de nítida desvantagem econômica com aqueles que buscavam o Poder Judiciário.

A controvérsia existente entre o Judiciário e o Legislativo ensejou o ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC n° 49), pelo estado do Rio Grande do Norte. A ADC, em resumo, buscava o pronunciamento do STF quanto à incidência do ICMS sobre o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular localizados em estados federados distintos.

Em 2021, no julgamento da ADC nº 49, o STF, por unanimidade, declarou inconstitucional o trecho da Lei Kandir que possibilitava aos fiscos estaduais exigirem o recolhimento do ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa.

A decisão, dotada de eficácia geral e vinculante, parecia que tinha encerrado a discussão. Contudo, em 19 de abril de 2023, o STF, com a pretensão de proteger a segurança jurídica e o interesse social, modulou os efeitos da decisão proferida no julgamento da ADC nº 49, determinando que apenas a partir de 1º de janeiro de 2024 não haveria incidência do ICMS nas transferências de mercadorias entre matriz e filial. Com isso, somente aqueles que tinham decisão favorável continuavam desobrigados ao recolhimento do ICMS incidente nas referidas operações. Para os demais, o ICMS apenas não incidiria a partir de 1/1/2024.

Com a finalidade de uniformizar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, na ADC n° 49, o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar n° 204/2023, afastando de forma inequívoca a possibilidade de incidência do ICMS na transferência de mercadorias entre matriz e filial. Assim como a decisão proferida pelo STF em sede de modulação de efeitos, a Lei Complementar n° 204/2023 começou a gerar efeitos a partir de 1/1/2024.

A alteração é importante, pois corrige uma antinomia constante no texto da Lei Kandir, garante a isonomia entre os contribuintes do ICMS e assegura a segurança jurídica de que não serão tributados pelo ICMS quando realizam o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular localizados em estados federados distintos.

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